segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Cultura Francisco Carlos Oliveira-Reis Poucas foram as palavras como cultura que se associaram de forma tão indelével à identidade que a antropologia assumiu perante as outras ciências desde o século XIX. Ao estabelecer a primeira definição abrangente do conceito de cultura em 1871, o antropólogo inglês E.B. Taylor formulou uma definição que se tornou clássica ao postular que cultura abrange o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Essa definição orgânica de cultura, que abrange os modos de vida de toda uma sociedade e se conecta ao contexto de experiência das pessoas, foi uma inflexão importante na história da antropologia porque serviu para se contrapor à visão humanista convencional, imbuída de pedantismo e orgulho espiritual, que buscava se apropriar da idéia de cultura como termo exclusivo das grandes civilizações e das altas classes (Kuper, 2001). Por outro lado, ao longo do desenvolvimento da disciplina, a noção de cultura foi sendo elaborada até se tornar a principal ferramenta analítica de que o antropólogo se serve para controlar a experiência que tem em campo e torná-la seu idioma para falar sobre e abordar as coisas (Wagner, 1981:10). E como pensarmos os usos contemporâneos da idéia de cultura que extrapolam as fronteiras da antropologia? Como os estilos de vida moderno têm instrumentalizado essa idéia e incorporado novas acepções ao seu uso? De fato, a cena contemporânea tem testemunhado um uso tão diversificado do termo cultura que ela passou a ser 'reivindicada', sob circunstâncias e motivos variados, por sujeitos e coletivos que a instrumentalizam para auto-afirmar a identidade dos grupos étnicos e/ou nacionalistas, para caracterizar a vida dos imigrantes, para apontar as características afins à classe média, as formas de manifestação urbana dos grupos jovens, o universo das relações virtuais e comportamentos que emergem da cyberculture, o ambiente e as relações de negócios nas grandes corporações entre outros usos numa tal “febre da cultura” (Sahlins, 1997: 65) que hoje a idéia está dilatada e foi apropriada para usos políticos, econômicos, diplomáticos, auto-afirmativos, definidores de identidade ou, em alguns casos, como apenas um índice de distintividade social para grupos de elite (Brumann, 1999: 9; Kuper, 2002: 23 et passim). Historicamente, para compreender como se desenvolveu esse caracter plurissemântico imanente à idéia de cultura, é preciso retomar ao Romantismo alemão em fins do século XVIII, de onde se origina o uso de cultura com as múltiplas acepções que procuramos diferenciar. Com efeito, Johann Herder foi o pensador que mais se destacou nesse importante período da história das idéias no Ocidente por ter sido um dos “criadores da doutrina secular da unidade do fato e do valor, da teoria e da prática, do “é” e do “dever ser”, do julgamento intelectual e do comprometimento emocional, do pensamento e da ação” (Berlin, 1982: 141), vindo, assim a ser considerado como “o pai do conceito de cultura no sentido plural e específico enquanto oposto a cultura no sentido genérico” (Kroeber & Kluckhohn apud Adams, 1998: 277 et passim), além de vir a ser considerado como o pai dos nacionalismos na Europa. Analisando o contexto histórico em que isso se deu, Norberto Elias destacou que a sociedade alemã dessa época, com seus inúmeros principados em um Estado ainda não unificado, estabeleceu uma forte antítese e tensão entre os conceitos de Cultura (Kultur), que era reivindicado como a autêntica auto-consciência alemã e se ligava ao estrato da intelligentsia de classe média, e o conceito de Civilização (Zivilisation), ligado à aparência externa e superficial dos refinamentos de etiqueta da classe cortesã alemã imitadora da aristocracia francesa (Elias, 1997). Nesses termos, e numa rápida síntese, podemos distinguir duas grandes tendências em que a idéia de cultura se desdobra: de um lado, as diferentes tradições antropológicas vão enfatizar os usos analíticos e a capacidade de compreensão das partes e do todo que compõem a sociedade; de outro, as pessoas no seu dia-a-dia, no âmbito do seu grupo social para se contrastar com os outros, na positivação dos seus modos sociopolíticos de agir, sentir e pensar vão se apropriar da noção de cultura para caracterizar diferentes aspectos da vida social. Dessa forma, a maioria dos Estados-Nação? soberanos não se prontificam a reconhecer a vinculação entre os direitos humanos fundamentais e as culturas dos grupos minoritários que compõem seus respectivos territórios, sendo raras as constituições nacionais que trate em algum dos seus capítulos dos direitos culturais (Symonides, 1998). Todavia, não obstante a Constituição Federal de 1988 não ter incluído o pluralismo cultural dentre os fundamentos que compõem o regime republicano no seu Art.1o, deve-se reconhecer que, ao acolher os “direitos culturais” como tema maior do seu Art. 215, a Carta Magna representou um grande avanço em oferecer as devidas garantias do Estado democrático ao pleno exercício desses direitos e o livre acesso às fontes culturais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAMS, Y. William. 1998. The philosofical roots of anthropology. CSLI Lecture Notes Number 86 Publications (Center for the Study of Language and Information): Stanford, California. BERLIN, Isaiah. 1982 1976. Vico e Herder. Brasília: Editora da UnB Pensamento Político 49. BRUMANN, Christoph. 1999. “Writing for culture – why a sucessful concept should not be discarded”. Current Anthropology Vol. 40, Supplement, 01-27. ELIAS, Norbert. 1997 1939. O Processo civilizador: uma história dos costumes (vol. I). Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro. KUPER, Adam. 2002 1998. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração. SAHLINS, Marshal. 1997. “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção”. In Mana vols. 3, nº1 e vol.3, nº2. SYMONIDES, Janusz. 1998. “Derechos culturales: una categoria descuidada de derechos humanos. In Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 158. WAGNER, Roy. 1981. The invention of culture. The University Chicago Press. Francisco Carlos Oliveira-Reis? é analista pericial em antropologia do Ministério Público Federal em São Paulo, Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. fcoreis@prsp.mpf.gov.br

Cultura

Francisco Carlos Oliveira-Reis
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Poucas foram as palavras como cultura que se associaram de forma tão indelével à identidade que a antropologia assumiu perante as outras ciências desde o século XIX. Ao estabelecer a primeira definição abrangente do conceito de cultura em 1871, o antropólogo inglês E.B. Taylor formulou uma definição que se tornou clássica ao postular que cultura abrange o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Essa definição orgânica de cultura, que abrange os modos de vida de toda uma sociedade e se conecta ao contexto de experiência das pessoas, foi uma inflexão importante na história da antropologia porque serviu para se contrapor à visão humanista convencional, imbuída de pedantismo e orgulho espiritual, que buscava se apropriar da idéia de cultura como termo exclusivo das grandes civilizações e das altas classes (Kuper, 2001). Por outro lado, ao longo do desenvolvimento da disciplina, a noção de cultura foi sendo elaborada até se tornar a principal ferramenta analítica de que o antropólogo se serve para controlar a experiência que tem em campo e torná-la seu idioma para falar sobre e abordar as coisas (Wagner, 1981:10). E como pensarmos os usos contemporâneos da idéia de cultura que extrapolam as fronteiras da antropologia? Como os estilos de vida moderno têm instrumentalizado essa idéia e incorporado novas acepções ao seu uso?
De fato, a cena contemporânea tem testemunhado um uso tão diversificado do termo cultura que ela passou a ser 'reivindicada', sob circunstâncias e motivos variados, por sujeitos e coletivos que a instrumentalizam para auto-afirmar a identidade dos grupos étnicos e/ou nacionalistas, para caracterizar a vida dos imigrantes, para apontar as características afins à classe média, as formas de manifestação urbana dos grupos jovens, o universo das relações virtuais e comportamentos que emergem da cyberculture, o ambiente e as relações de negócios nas grandes corporações entre outros usos numa tal “febre da cultura” (Sahlins, 1997: 65) que hoje a idéia está dilatada e foi apropriada para usos políticos, econômicos, diplomáticos, auto-afirmativos, definidores de identidade ou, em alguns casos, como apenas um índice de distintividade social para grupos de elite (Brumann, 1999: 9; Kuper, 2002: 23 et passim).
Historicamente, para compreender como se desenvolveu esse caracter plurissemântico imanente à idéia de cultura, é preciso retomar ao Romantismo alemão em fins do século XVIII, de onde se origina o uso de cultura com as múltiplas acepções que procuramos diferenciar. Com efeito, Johann Herder foi o pensador que mais se destacou nesse importante período da história das idéias no Ocidente por ter sido um dos “criadores da doutrina secular da unidade do fato e do valor, da teoria e da prática, do “é” e do “dever ser”, do julgamento intelectual e do comprometimento emocional, do pensamento e da ação” (Berlin, 1982: 141), vindo, assim a ser considerado como “o pai do conceito de cultura no sentido plural e específico enquanto oposto a cultura no sentido genérico” (Kroeber & Kluckhohn apud Adams, 1998: 277 et passim), além de vir a ser considerado como o pai dos nacionalismos na Europa. Analisando o contexto histórico em que isso se deu, Norberto Elias destacou que a sociedade alemã dessa época, com seus inúmeros principados em um Estado ainda não unificado, estabeleceu uma forte antítese e tensão entre os conceitos de Cultura (Kultur), que era reivindicado como a autêntica auto-consciência alemã e se ligava ao estrato da intelligentsia de classe média, e o conceito de Civilização (Zivilisation), ligado à aparência externa e superficial dos refinamentos de etiqueta da classe cortesã alemã imitadora da aristocracia francesa (Elias, 1997).
Nesses termos, e numa rápida síntese, podemos distinguir duas grandes tendências em que a idéia de cultura se desdobra: de um lado, as diferentes tradições antropológicas vão enfatizar os usos analíticos e a capacidade de compreensão das partes e do todo que compõem a sociedade; de outro, as pessoas no seu dia-a-dia, no âmbito do seu grupo social para se contrastar com os outros, na positivação dos seus modos sociopolíticos de agir, sentir e pensar vão se apropriar da noção de cultura para caracterizar diferentes aspectos da vida social.
Dessa forma, a maioria dos Estados-Nação? soberanos não se prontificam a reconhecer a vinculação entre os direitos humanos fundamentais e as culturas dos grupos minoritários que compõem seus respectivos territórios, sendo raras as constituições nacionais que trate em algum dos seus capítulos dos direitos culturais (Symonides, 1998). Todavia, não obstante a Constituição Federal de 1988 não ter incluído o pluralismo cultural dentre os fundamentos que compõem o regime republicano no seu Art.1o, deve-se reconhecer que, ao acolher os “direitos culturais” como tema maior do seu Art. 215, a Carta Magna representou um grande avanço em oferecer as devidas garantias do Estado democrático ao pleno exercício desses direitos e o livre acesso às fontes culturais.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ADAMS, Y. William. 1998. The philosofical roots of anthropology. CSLI Lecture Notes Number 86 Publications (Center for the Study of Language and Information): Stanford, California.

BERLIN, Isaiah. 1982 1976. Vico e Herder. Brasília: Editora da UnB Pensamento Político 49.

BRUMANN, Christoph. 1999. “Writing for culture – why a sucessful concept should not be discarded”. Current Anthropology Vol. 40, Supplement, 01-27.

ELIAS, Norbert. 1997 1939. O Processo civilizador: uma história dos costumes (vol. I). Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro.

KUPER, Adam. 2002 1998. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração.

SAHLINS, Marshal. 1997. “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção”. In Mana vols. 3, nº1 e vol.3, nº2.

SYMONIDES, Janusz. 1998. “Derechos culturales: una categoria descuidada de derechos humanos. In Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 158.

WAGNER, Roy. 1981. The invention of culture. The University Chicago Press.

Francisco Carlos Oliveira-Reis? é analista pericial em antropologia do Ministério Público Federal em São Paulo, Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília.

fcoreis@prsp.mpf.gov.br

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