http://www.saneamentoweb.com.br/sites/default/files/PANORAMA_Vol_1.pdf
em 10.10.2011
Controle social e participação
16
A participação e o controle social inserem-se no âmbito da gestão dos serviços de saneamento básico e
relacionam-se ao desenvolvimento da democracia ocidental capitalista, na medida em que estão atrelados
aos princípios da cidadania e da governança dos bens comuns. Participação e controle social representam a
democratização da gestão dos serviços, processo que enfrenta, como um dos maiores desafios, a
proposição de articulações interdisciplinares, em um campo cada vez mais complexo, tendo em vista a
influência de fatores não apenas técnicos, mas também de caráter político, econômico e cultural (CASTRO,
2011b; JACOBI, 2004). Porém, a gestão dos serviços de saneamento, tradicionalmente, é relegada à
dimensão técnico-administrativa, artificialmente separando-se dos processos socioeconômicos e políticos,
os quais estruturam, dão marco e até determinam a forma como esses serviços são organizados e geridos
(CASTRO, 2011b).
CASTRO (2011b), ao elaborar um marco conceitual para análise das relações entre a gestão dos serviços de
saneamento básico e o processo de democratização da sociedade, apresenta uma importante contribuição
para a compreensão do desenvolvimento desses serviços essenciais nos países ocidentais. Para o autor, a
universalização do acesso aos serviços nos países capitalistas centrais durante o século XX está
estreitamente relacionada com o desenvolvimento de formas modernas da democracia capitalista, em
especial na instituição da cidadania. O autor destaca o papel dos distintos modelos de governança,
entendidos como diferentes formas de exercício do poder na tomada de decisão, que podem, portanto,
16
Elaborado com base, principalmente, no Caderno Temático 9, Gestão democrática nos serviços de saneamento, de autoria de
José Esteban Castro.46
definir o controle democrático, como também a distribuição dos benefícios dos investimentos, quanto à
ampliação do acesso aos bens e serviços básicos. Examinar as interrelações entre o desenvolvimento dos
serviços e o processo de democratização permitiria alcançar uma compreensão mais cabal e profunda das
condições sistêmicas, dos obstáculos e das oportunidades que envolvem a referida democratização.
Jacobi (2009) observa que o conceito de participação está associado ao da democracia deliberativa e à
existência de uma esfera pública, que é parte do vínculo histórico da democracia, com a criação de novos
direitos. De acordo com esse autor, torna-se necessário recorrer ao referencial teórico que reflete sobre a
sucessiva criação e expansão dos direitos dos cidadãos na sociedade moderna, reflexão corroborada por
Castro (2011b), para o qual o desenvolvimento da cidadania, no contexto da democracia liberal, pode ser
examinado, enfocando dois aspectos fundamentais: a cidadania como identidade política, que assumem os
membros de um estado-nação, e a cidadania como relação social, na qual os sujeitos de uma comunidade
política garantem os direitos e deveres sobre os quais se assentam dita relação.
Castro (2011b) complementa ainda que o desenvolvimento do conceito de cidadania como relações sociais
está fortemente vinculado ao percurso histórico dos serviços de saneamento básico e constitui elemento
fundamental para a compreensão de sua gestão democrática, conforme explorado no capítulo 2. Nesse
contexto, o autor destaca que a participação é componente central dos conceitos de cidadania e gestão
democrática e tem suas origens nas lutas sociais pela expansão dos direitos de cidadania a setores cada vez
mais amplos da população. O autor não se exime, no entanto, de explorar as contradições intrínsecas ao
processo de democratização e de “cidadanização”, que adquirem naturezas específicas em distintos
territórios. Em relação às formas concretas que os regimes democráticos assumiram na América Latina,
afirma que sua feição leva a questionar profundamente o sentido adotado pelo conceito de democracia e,
consequentemente, requer que se adote uma visão crítica do processo de democratização nos diversos
países
17
. É destacado ainda que a cidadania, como relação social característica da democracia capitalista,
implica um duplo processo: de uma parte, a equiparação formal dos indivíduos, e, de outra, a reprodução
de formas de diferenciação social e mecanismos de inclusão – exclusão entre cidadãos e não cidadãos,
cujas raízes estruturais se encontram nas desigualdades de classe, de gênero e étnicas, entre outras.
Originalmente, cidadãos eram os que detinham a propriedade e, apesar de essa limitação ter sido superada
no plano da legalidade formal, na prática, as desigualdades estruturais seguem constituindo a barreira
fundamental, que determina a exclusão de amplos setores da população do exercício da cidadania
18
(CASTRO, 2011b). Ou seja, a cidadania provê a base da igualdade formal, que legitima o sistema de
desigualdade real, mas ao mesmo tempo oferece as condições que potencialmente levam a um processo
de igualação crescente dos desiguais. Indubitavelmente, a extensão do conteúdo dos direitos, a expansão
da comunidade beneficiária e o aprofundamento de seu exercício real, não meramente formal, constituem
avanços no processo de democratização da sociedade, resultantes de recorrentes lutas sociais.
Para Castro (2011b), uma referência teórica central para o estudo do conceito de cidadania encontra-se na
obra de Thomas H. Marshall - Cidadania, classe social e status -, publicada em 1949 [1967]. Marshall (1967),
tomando como referência a Inglaterra, elabora sobre a evolução da cidadania. Segundo esse autor, o
conceito de cidadania pode ser definido como a participação integral do indivíduo na comunidade política e
distingue três tipos de direitos da cidadania: os direitos civis, fundamentalmente de propriedade e justiça;
17
Sobre este tema, o autor sugere as seguintes leituras: Waksman (1989), Portales (2000), Torres Rivas (1988), O’Donnell (1994) e
Marín (1996).
18
Para uma visão mais profunda desse tema, Castro (2011) sugere a consulta às seguintes obras: Marín (1996), Glenn (2000), Fallon
Jr.; Meltzer (2007), Morrison (2007), Leys (2001) e Harvey (2005).47
os direitos políticos, aqueles que garantem a participação dos cidadãos no exercício do poder político; e os
direitos sociais, aqueles que asseguram o acesso a um mínimo de bem-estar material.
Castro (2011b), ao apresentar uma análise detalhada das relações entre direitos sociais da cidadania e os
serviços de saneamento, afirma que residem, nessas relações, questões que se encontram no cerne do
problema da gestão democrática. Por outro lado, considerando que os direitos políticos envolvem a
participação do cidadão no exercício do poder, no governo dos assuntos comuns, seja mediante a eleição
de governantes, seja podendo ser eleito para participar do governo, a sua constituição apresenta
significativa diferença entre as sociedades capitalistas modernas. Na América Latina, o exercício substantivo
do direito político tem sido historicamente restrito a certas frações da classe dominante, sendo que a
rápida ampliação da participação da população no exercício desses direitos, desde meados do século XX, foi
violentamente restringida mediante a instalação de ditaduras cívico-militares, que deixaram uma ferida
profunda nas sociedades do Continente. Segundo o autor, o fim das ditaduras e o retorno à democracia
eleitoral nos países da região permitiram a abertura de espaços mais amplos para a participação efetiva da
população na vida política. De outra parte, desde a década de 1970, registrou-se, em muitos desses países,
crescente mobilização social em torno da busca por melhores condições materiais de vida, especialmente
nas zonas urbanas e peri-urbanas.
Jacobi (2009) sugere que, desde o início da década de 1980, com o processo de redemocratização do País e
de abertura política, as experiências de deliberação participativa passaram a se associar à capacidade dos
movimentos sociais de explicitar demandas relacionadas, principalmente, com a distribuição de bens
públicos e, em menor escala, com a formulação de políticas públicas. Avritzer (2002), por sua vez, destaca
que, especialmente nas grandes cidades, houve uma redefinição da forma de se fazer política, levando a
um aumento significativo do número de associações comunitárias e à intensificação de sua forma de
relação com o Estado. Para Dagnino (2002), a Constituição de 1988 é o marco formal do processo de
revitalização da sociedade civil no Brasil, intensificando o debates de temas de interesses até então
excluídos da agenda pública e, como resultado desse processo, a própria democratização do Estado, com o
restabelecimento de procedimentos democráticos formais. Nesse contexto, a autora ressalta a emergência
do que denomina de espaços públicos, ao se referir à implementação de conselhos, fóruns, câmaras
setoriais e orçamentos participativos.
As implicações desse cenário na área de saneamento básico são especialmente marcadas pelo processo de
mobilização social nas periferias urbanas que, nas décadas de 1970 e 1980, voltou-se para reivindicações
pelo acesso aos bens coletivos, em particular aos serviços de abastecimento de água e esgotamento
sanitário, conforme descrito por Jacobi (1984, 1985), em seu estudo sobre saneamento básico e
reivindicações sociais na grande São Paulo, no período de 1973 a 1979, e por Somarriba (1993), que faz um
balanço do movimento reivindicatório urbano e político em Belo Horizonte na década de 1980. No que
tange à gestão dos resíduos sólidos, é importante ressaltar o papel dos catadores de materiais recicláveis,
que começam a se organizar, a partir da década de 1980, em cooperativas ou associações, na busca pelo
reconhecimento de sua atividade como profissão (MAGERA, 2003). Em relação aos canais democráticos
formais, os quais Jacobi (2009) denomina de novas engenharias institucionais, têm influenciado a área de
saneamento básico os orçamentos participativos, conforme Navarro (2005), e os conselhos e comitês
gestores (PITERMAN, 2008; JACOBI, 2004). Destacam-se, também, a realização, das Conferências das
Cidades, em nível nacional, estadual e local, no ano de 2009, da 1
a
Conferência Nacional de Saúde
Ambiental.48
Tais encontros, conforme terminologia proposta por Dagnino (2002) para designar os vários tipos de
relação entre a sociedade civil e o Estado, no processo de democratização da gestão pública no Brasil,
podem assim contribuir para a construção da cidadania e para afirmação dos direitos políticos, ao
quebrarem a inércia da cultura política brasileira. Esta, caracterizada pelo autoritarismo, elitismo e
paternalismo de suas instituições políticas, tem provocado déficits de formação política, com baixa
possibilidade de participação nos processos decisórios. Porém, Castro (2011b) ressalta que, apesar dos
avanços alcançados no plano legal-formal em distintos países, na prática, os cidadãos comuns seguem
assistindo, mais como espectadores que como participantes com direitos, a gestão ambiental, incluindo a
gestão da água e seus serviços. Um exemplo notório desses limites, na América Latina, seria o
aprofundamento e aceleração de políticas neoliberais durante a década de 1990.
O processo de construção da cidadania é marcado por paradoxos, na medida em que se explicitam três
dinâmicas concomitantes – o reconhecimento e a construção das identidades dos distintos sujeitos sociais
envolvidos, o contexto da inclusão das necessidades expressas pelos distintos sujeitos sociais e a definição
de novas agendas de gestão (JACOBI, 2009). Esses aspectos expressam-se, notadamente, quanto à
extensão dos bens públicos a amplos setores da população, visando à universalidade e a equidade no
acesso.
As experiências empíricas que envolvem a relação entre a área de saneamento básico e a gestão
participativa nos espaços públicos têm corroborado as reflexões precedentes. Vitale (2004), a partir de
pesquisa em seis municípios brasileiros que introduziram o Orçamento Participativo (OP), afirma que, em
todos os casos estudados, o OP pretende uma dupla democratização. De um lado, a ampliação do modo de
exercício da soberania popular, ao criar instâncias diretas de participação que se articulam às
representativas. De outro, a redistribuição de bens e serviços públicos, visando democratizar o acesso aos
recursos públicos. Somarriba (2005), sobre a experiência de Belo Horizonte, afirma que o OP aumenta a
equidade na distribuição dos recursos públicos e que, diante do enorme acúmulo de carências urbanas nas
regiões mais pobres da cidade, a maioria dos investimentos tem sido realizada em obras de saneamento
básico, infraestrutura e habitação popular nessas regiões, em claro esforço de inversão de prioridades ou
discriminação positiva. Segundo a autora, sobre esta ser uma característica do OP, há grande convergência
entre os dados e avaliações internas da Prefeitura de Belo Horizonte e de estudos de natureza mais
acadêmica. Ademais, Navarro (1998) apud Avritzer (2002) mostra, ao se avaliar a capacidade do município
de Porto Alegre em construir sua rede de esgotamento sanitário ao longo do tempo, que se pode observar
claro aumento dessa expansão após a introdução do Orçamento Participativo, conforme Figura 4.2.49
Fonte: Navarro (1998) apud Avritzer (2002)
FIGURA 4.2: Evolução da Implantação de redes de esgotamento sanitário. Porto Alegre, 1983-1996.
Para Avritzer (2002), embora o potencial de aumento da equidade e a melhoria do desempenho da
administração pública pareçam ser as principais resultantes do processo de OP, como forma de relação
entre Estado e sociedade, é necessário também apontar os limites da proposta. O autor ressalta que a
pouca democratização na relação entre os próprios atores sociais e a incapacidade de se estender o OP
para arenas nas quais o que estão em jogo são alternativas de políticas públicas, são dois limites bastante
claros.
A institucionalização de práticas participativas tem sido vista como complexa e conflituosa e que existe
crescente necessidade de se entenderem as ambiguidades dos processos sociais, dos arranjos possíveis e
dos limites das experiências. Menciona o exemplo dos conselhos gestores que, no âmbito da política
ambiental, têm se mostrado instâncias bastante formais, sem capacidade de influenciar o processo
decisório, nos quais a representação assume caráter contraditório, ao ser controlada majoritariamente pelo
Executivo. No entanto, são espaços que publicitam o conflito que lhes é inerente e que oferecem
procedimentos – discussão, negociação e voto – e espaço (JACOBI, 2004; JACOBI; BARBI, 2007).
Nessa perspectiva, a Lei n. 11.445/2007 apresenta ambiguidade quanto ao principio da democratização da
gestão dos serviços. De um lado, estabelece, em seu Art. 2º, inciso X, que o controle social compreende um
dos princípios fundamentais dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil e determina sua
obrigatoriedade nas atividades de planejamento, regulação e fiscalização, além de exigir a realização de
audiências públicas em caso de concessão dos serviços. De outro, no seu Art. 47, ao disciplinar o controle
social nos órgãos colegiados, a Lei adota postura tímida, definindo a formação de órgãos colegiados como
facultativa e sugerindo que tenham caráter consultivo. A despeito dessa contradição, a Lei aponta na
direção de uma gestão na qual os processos políticos e o exercício de poder, do ponto de vista formal,
estejam amparados em norma que institucionaliza a participação social, embora se devam reconhecer os
óbices para o alcance de uma gestão democrática substantiva, não apenas formal. Contudo, esse
instrumento legal representa um marco para governança da gestão dos serviços de saneamento básico no
Brasil, no que se refere ao controle e participação social, já que, ao estabelecer o controle social como um
princípio fundamental, define uma forma de exercício do direito sobre os serviços.
Nessa direção, Castro (2006a) assinala que o processo de governança é resultado de uma incessante
confrontação social em torno da definição dos princípios, valores e instituições que intervêm no governo,
Evolução na implantação de redes de saneamento
básico - Porto Alegre
5.296
8.091
21.674
61.334
0
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
60.000
70.000
1983/1987 1988 1989 /1992 1993/1996 Redes implantadas (m/ano)
1988 - Eleição de Olívio Dutra - Introdução do OP em Porto Alegre50
gestão e prestação dos serviços, como também em relação a quem irá governar, gerir e prestar os serviços
e para benefício de quem. Traçando-se um cenário contra factual, vislumbra-se que Lei n. 11.455/2007,
assim como todos os acontecimentos que a sucederam, tais como o Pacto Pelo Saneamento Básico,
aprovado pelo Conselho das Cidades, representa um novo momento para a área de saneamento básico
que, historicamente, tem se mostrado refratária ao controle social nos processos decisórios (HELLER;
REZENDE; HELLER, 2007). Tem, assim, excluído ou, nas melhores situações, limitado a participação da
sociedade na governança desses serviços essenciais.
A construção de relações teóricas e práticas entre os conceitos de cidadania, governança, controle social e
participação, na gestão dos serviços de saneamento básico, vislumbrando avançar na instituição de práticas
democráticas substantivas, corresponde a uma tarefa complexa, em decorrência, em parte, da própria
natureza do tema, localizado no limiar entre o campo político e o campo técnico, ambos com suas múltiplas
dimensões e contradições internas. Para Dagnino (1994), todo campo político relevante é sempre um
campo minado, um campo de disputa, de apropriação e desapropriação de significados como parte
constitutiva da luta política. O campo técnico, principalmente ao refletir as opções para intervenções em
saneamento básico, está longe de um debate consensual. Exemplos dessa natureza são encontrados
quando se discutem a disposição final de resíduos sólidos, alternativas para controle de inundações,
técnicas para o tratamento de esgotos, opções de abastecimento de água em áreas de vilas e favelas e para
o abastecimento de comunidades dispersas, entre muitos outros temas. Além, obviamente, dos aspectos
técnicos relacionados à gestão dos serviços e soluções de saneamento.
Nessa conjuntura, a participação da sociedade na gestão dos serviços de saneamento básico insere-se em
um contexto onde, nem os acadêmicos, nem os técnicos, dispõem de modelos pré-existentes que garantam
a viabilidade das opções adotadas nos processos de decisão. E daí, emergem duas perspectivas distintas:
por um lado, a participação social contribuiria para construção das alternativas de políticas públicas
inclusivas, e, por outro, representaria ameaça ao exercício do poder de decisão da elite intelectual, técnica
e política. Nesse aspecto, é importante retornar às principais formas de governança que predominaram no
setor de saneamento urbano nos países ocidentais, nas suas três fases, reiterando que a adoção dos
princípios do racionalismo administrativo, a partir do século XIX, embora tenha tido êxito na
universalização do acesso aos serviços nos países capitalistas centrais, em meados do século XX, centralizou
a tomada de decisão entre especialistas técnico-científicos e políticos profissionais. Um dos aspectos mais
frágeis desse modelo de gestão foi o escasso espaço outorgado à participação democrática, ao exercício
dos direitos cidadãos relacionados ao acesso ao conhecimento sobre como se governam e se gerem esses
serviços de interesse público, e sobretudo o controle social democrático da gestão. Com a adoção das
reformas neoprivatistas, a partir da década de 1980, intensifica-se a escassez de espaços para participação
da sociedade nos processos de gestão. Além dessa problemática, que se pode entender como interna à
área de saneamento básico, soma-se a questão da dependência em relação ao sistema político e social do
qual faz parte.
Castro (2011b) ressalta ainda que, tanto a participação social quanto a governança, no âmbito de
determinada área, como a de saneamento básico, são influenciadas pelos processos de participação e
governança de outras áreas inter-relacionadas, como a ambiental e a da saúde. Nesse sentido, é possível
que uma determinada sociedade introduza mudanças orientadas à democratização da gestão na área de
saneamento, por exemplo, impulsionando uma legislação que promova a participação efetiva dos usuários,
e, no entanto, o impacto potencial dessas reformas seja reduzido ou inclusive neutralizado, porque a
estrutura de governança no nível sistêmico é altamente refratária ao processo de democratização. Nesse 51
caso, a participação tenderia a se estabilizar em torno da manutenção das relações de poder tradicionais,
que podem ter caráter tecnocrático, com participação altamente restringida, quando não essencialmente
autoritário. O autor também destaca que as contribuições e desajustes entre os processos podem ser
consequências das distintas escalas territoriais (nível nacional, regional e local), como também entre
âmbitos territoriais de nível similar (por exemplo, entre diferentes estados e municípios).
Outro determinante fundamental na manutenção de situações que impedem, ou limitam, a maioria da
população de participar dos processos de gestão dos serviços de saneamento básico é a reprodução de
desigualdades sociais estruturais. Para Castro (2011b), historicamente, o exercício substantivo dos direitos
políticos na América Latina tem sido restrito a certas frações da classe dominante, sendo que qualquer
intenção de ampliação desse exercício tem enfrentado oposição férrea dos setores que tradicionalmente
detêm o poder. Por esse motivo, diz o autor, não é de se estranhar que, em um contexto social em que os
direitos políticos em geral se encontram altamente restringidos, também seu exercício em relação aos
serviços de saneamento básico seja severamente afetado.
Em síntese, são diversas as dimensões conceituais que envolvem a discussão sobre a participação e o
controle social em saneamento básico, que se expressam, desde em sua matriz histórica, até na
identificação das suas correntes analíticas. Particularmente no Brasil, e sob a égide dos princípios da Lei n.
11.445/2007, ainda se mostra necessário um esforço de aprofundamento em várias das faces do processo
participativo, que pode eventualmente ser iluminado pela discussão precedente. Caberia indagar,
inicialmente, se os dispositivos da Lei serão suficientes para romper as forças inerciais desencadeadas por
décadas de processos verticais e pouco participativos, que vêm predominando na gestão dos serviços no
Brasil. Caberia também interrogar, entre outras questões, sobre modelos participativos mais ou menos
eficazes e efetivos, sob a ótica da não reprodução das assimetrias de poder e do avanço na direção da
universalidade, equidade, integralidade e intersetorialidade.
Avaliação
O processo de avaliação das políticas, programas e ações desenvolvidos na área de saneamento básico,
ademais de poder cumprir papel fundamental para seu aperfeiçoamento, constitui empreendimento
complexo, que requer clareza de objetivos e dos aspectos da realidade objeto da avaliação, bem como dos
limites do aparato conceitual e metodológico utilizado. Na área de avaliação de políticas públicas de
saneamento básico, importante referencial é apresentado no estudo Avaliação de impacto na saúde das
ações de saneamento: marco conceitual e estratégia metodológica, produto de trabalho entre instituições
acadêmicas brasileiras, Ministério da Saúde e a Representação da Organização Pan-Americana da
Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil (BRASIL, 2004). Esse marco conceitual e
metodológico foi desenvolvido visando a avaliação do Projeto Alvorada, um programa federal de
saneamento. O universo dessa avaliação compreendia 1.846 municípios, com ampla variedade de portes
populacionais (municípios com população entre 1.025 habitantes e 723.142 habitantes), como também
institucional, e incluindo ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário e melhorias sanitárias
domiciliares
19
. A fim de contemplar as diversas faces da avaliação, a proposta foi organizada em quatro
diferentes eixos – saneamento, antropologia, epidemiologia e economia da saúde – com recursos
metodológicos próprios. De publicação mais recente, destaca-se o trabalho – Avaliação do plano municipal
19
São consideradas Melhorias Sanitárias Domiciliares (MDS) aquelas ações que visam controlar doenças evitáveis, mediante
medidas de saneamento nos domicílios, envolvendo a construção de banheiros, privadas, fossas sépticas, vasos sanitários, pias de
cozinha, lavatórios, tanques, reservatórios de água e filtros, etc.52
de saneamento básico: conceitos, experiências brasileiras e recomendações (BORJA, 2010) – que discute a
temática da avaliação de políticas públicas, objetivando contribuir para a definição de modelos de avaliação
de Planos Municipais de Saneamento Básico.
Para Belloni; Magalhães; Sousa (2001), avaliar significa compreender as atividades, fatos ou coisas
avaliadas, com vistas a estimular seu aperfeiçoamento. Essa dimensão enfatiza a finalidade normativa da
avaliação, voltada não apenas para melhorar o conhecimento ou as informações sobre as ações
desenvolvidas, mas também para subsidiar a tomada de decisão e portanto oferecer, de modo explícito,
elementos para aperfeiçoamento, sua total revisão ou substituição da política. As razões que levam à
necessidade de avaliação são de distintas ordens - política, técnico-científica ou gerencial -, sendo que
avaliar intervenções sociais representa atividade relevante para o processo de decisão-ação, por produzir
informações que subsidiam gestores e financiadores, para definição de prioridades, para apresentar à
sociedade resultados dos investimentos realizados e para apontar modificações e adequações necessárias
às intervenções já implementadas (BRASIL, 2004).
Ainda em Brasil (2004), é ressaltado que, em paralelo a essa perspectiva pragmática que resulta da
pesquisa avaliativa, existem outros ganhos envolvidos na sua realização. Em primeiro lugar, ao envolver os
responsáveis pela formulação e implementação de políticas e, mais a largo, a sociedade em geral,
possibilita ampliar as interações entre esses vários atores e mediar essas interações, por informações
técnico-científicas qualificadas. Outro aspecto, não menos importante, é o de que a pesquisa avaliativa se
constitui em importante fonte de conhecimento sobre elementos da dinâmica dessa própria sociedade.
Sabe-se que muitas das políticas sociais, ao terem como propósito central implementar intervenções que
tragam incrementos no estado de bem-estar de uma população, estão em verdade modificando
determinantes, na base dos níveis iniciais de bem-estar ou de saúde dessa população. Ao produzir
conhecimento de como a intervenção modificou o estado anterior de bem-estar, a avaliação está também
ajudando a entender como os determinantes atuam (BRASIL, 2004).
Figueiredo e Figueiredo (1986) fazem uma distinção entre avaliação política e avaliação de política.
Segundo os autores, a primeira tem por objetivo avaliar os princípios que fundamentam uma política e, em
decorrência, seu conteúdo substantivo. A avaliação de políticas, por seu turno, tem como propósito estudar
como as decisões são tomadas, que fatores influenciam o processo de decisão e as características desse
processo, como também a eficácia das políticas. Essa reflexão também está presente em Belloni;
Magalhães; Sousa (2001) para os quais a avaliação de uma política pública deve considerar os seguintes
parâmetros conceituais de análise: a política como um instrumento de ação do Estado, em suas
perspectivas político-filosóficas relativas à questão objeto de política, e a política específica tal como é
formulada e implementada. Para Rico (2000), a avaliação política examina o caráter político do processo
decisório que levou à adoção de uma determinada política, como também os valores e critérios políticos
que a orientam, independente da engenharia institucional e de seus resultados. Por outro lado, a avaliação
de política busca examinar a engenharia institucional e os traços constitutivos dos programas.
Ainda na perspectiva de definição do aspecto da realidade a ser avaliado, Figueiredo e Figueiredo (1986)
ressaltam a necessidade de distinção entre os conceitos de efetividade, eficiência e eficácia. Para os
autores, a avaliação da efetividade de uma intervenção deve se basear no exame da relação entre a
implementação de um determinado programa e seus resultados, isto é, o sucesso ou o fracasso em termos
de uma real mudança nas condições sociais prévias da vida das populações atingidas pelo programa sob
avaliação. Já o conceito de eficiência estaria voltado para avaliação da relação custo/benefício de
determinada intervenção, visando à otimização da utilização de recursos. No que concerne à avaliação da 53
eficácia de determinada política, o ponto central da análise se volta ao alcance ou não das metas
estabelecidas.
Para Borja (2010), no Brasil, os modelos de avaliação têm privilegiado a análise da eficácia e eficiência das
políticas e programas, negligenciando-se a efetividade. Assim, têm se procurado saber se as metas das
políticas e programas foram cumpridas e se os gastos foram compatíveis, mas os resultados, os impactos,
via de regra, não são objeto de análise. A autora ainda ressalta que as avaliações têm sido mais
direcionadas para o estudo do processo político de sua formulação e de tomada de decisão, principalmente
em estudos acadêmicos, sendo dada pouca atenção ao conteúdo, às consequências ou aos impactos das
políticas.
Outro ponto que merece ser destacado refere-se ao próprio conceito de saneamento básico que orienta a
avaliação. A precisa definição conceitual do que se pretende avaliar é fundamental, na medida em que
interfere na metodologia de análise a ser adotada para a realização da avaliação, na definição dos aspectos
da realidade que serão considerados e no esclarecimento dos limites da análise desenvolvida. Nesse
contexto, as diferentes formas de conceituar o objeto de avaliação, como também as diferenças entre
processos que têm por finalidade avaliar efetividade, daqueles que avaliam eficiência das ações ou dos que
avaliam sua eficácia, são elementos essenciais.
Nesse contexto, remete-se ao debate recorrente na literatura, no qual ora se entende o saneamento básico
como um direito social, ora como um conjunto de obras de infraestrutura. Para Borja e Moraes (2005), nos
países ditos em desenvolvimento, as ações de saneamento deveriam ser encaradas como uma medida de
saúde pública. Essa abordagem aproximaria as políticas de saneamento das políticas sociais. No entanto, os
autores ressaltam que essa concepção não é unânime. Outra questão envolve a natureza pública ou
privada das ações avaliadas. Belloni; Magalhães; Sousa (2001) ressaltam que o caráter lucrativo de um
empreendimento altera profundamente a ideia de missão institucional, e, nesse caso, a concepção da
avaliação. Outra perspectiva entenderia o saneamento básico como ação de saúde pública, medida de
interesse local, direito do cidadão vinculado à moradia digna e à salubridade do meio, ação de proteção
ambiental, e, portanto, um direito social vinculado às políticas sociais (BORJA, 2010). Um processo de
avaliação, que considera as ações na área de saneamento básico como política pública, nortear-se-ia pelos
princípios da universalidade, igualdade, integralidade, titularidade municipal, gestão pública, participação e
controle social, parte dos quais são estabelecidos pela Lei n. 11.445/2007 (BRASIL, 2007). Em
complemento, para Heller e Nascimento (2005), ainda que alguns meritórios esforços recentes possam ser
percebidos, o campo do saneamento vem se encontrando imerso em um ambiente de rarefeitos debates
sobre o papel social que tem a cumprir, dificultando a realização de avaliações orientadas para a melhoria
da qualidade de vida da população e que representem contribuições para o desenvolvimento da área.
As avaliações são processos marcados pelas concepções de mundo prevalentes e seus resultados podem
ser alvo de intensos debates e divergências. Na avaliação da efetividade das ações de saneamento básico,
com vistas a, por exemplo, analisar os impactos na saúde, diversos limites tem sido apontados. Briscoe
(1987) ressalta que as metodologias tradicionalmente empregadas ao analisar a relação custo/benefício,
portanto a eficiência dos investimentos públicos em abastecimento de água e esgotamento sanitário, tais
como as que utilizam como indicador de benefício a redução da mortalidade infantil, subestimam os
benefícios à saúde decorrentes dessas ações, já que desconsideram, entre outros, os benefícios
relacionados à redução da morbidade e da mortalidade em todas as faixas etárias. O autor ainda ressalta
que, ao se buscar estabelecer a relação custo/benefício das intervenções, devem ser considerados fatores54
não relacionados à saúde, como a disposição a pagar dos consumidores, tendo em vista que as tarifas
pagas pelos usuários reduzem os custos a serem arcados por fundos públicos. Em Brasil (2004), é destacado
que, na determinação da relação custo/beneficio das intervenções em saneamento básico e a melhoria da
saúde, deve-se considerar que as ações de saneamento, ao propiciarem melhoria nos níveis de higiene dos
indivíduos e do seu contexto, reduzem o contato das populações com grande variedade de vetores,
reservatórios e agentes patogênicos e, assim, diminuem as chances de adoecimento por diversas doenças.
Ademais, essas intervenções, ao propiciarem água facilmente acessível, além de meios mais adequados
para coleta e disposição de esgotos sanitários e resíduos sólidos, elevam a qualidade de vida e influenciam
o modo de vida das populações beneficiadas, o que, em última instância, pode também ter efeitos positivos
sobre o bem-estar e a saúde e, indiretamente, na redução de diversas enfermidades relacionadas ao
desgaste físico e psicológico.
A situação é ainda mais complexa quando o objetivo reside na avaliação da efetividade das ações de
saneamento, ainda tendo como referência melhorias na saúde, tendo em vista que essa avaliação
demandaria a consideração de aspectos não mensuráveis, em decorrência do fato de que a noção de saúde
remete à percepção do indivíduo quanto ao seu estado de bem-estar, compreendendo a múltipla e
complexa noção envolvida nessa percepção. Ao se optar por tal arcabouço conceitual, a investigação da
efetividade das ações passa a abranger atributos da realidade não contemplados pelos métodos
epidemiológicos tradicionais de análise, pautados na quantificação. Passam a ser demandadas estratégias
de análise que contemplem aspectos subjetivos, assim como deem conta de contextualizar a pesquisa,
política e socialmente.
Ao discutir a escolha do método a ser utilizado em avaliações de política, Figueiredo e Figueiredo (1986)
afirmam que o mais importante em questionamentos dessa natureza é o estabelecimento das conexões
lógicas entre os objetivos da avaliação, os critérios de avaliação e os modelos analíticos capazes de dar
conta da pergunta básica de toda pesquisa de avaliação: a política ou programa sob avaliação foi um
sucesso ou um fracasso? Os autores complementam que a noção de sucesso e fracasso de uma política
depende dos propósitos dessa política e das razões que levaram o analista a avaliar tal política. Assim, de
acordo com os mesmos autores, do lado dos propósitos da política, deve-se considerar que estes
geralmente abrangem dois aspectos: (i) gerar um produto físico, tangível e mensurável; (ii) gerar um
impacto, que, tanto pode ser físico, tangível e mensurável, quanto subjetivo, alterando atitudes,
comportamentos e/ou opiniões.
Belloni; Magalhães; Sousa (2001) ressaltam que o processo de avaliação apresenta múltiplas possibilidades,
considerando óticas ou critérios distintos. Os autores diferenciam a avaliação de acordo com as concepções
e os objetivos visados, os momentos nos quais é realizada e os sujeitos participantes do processo avaliativo.
Uma síntese das possibilidades analíticas é apresentada na Figura 4.3.55
Fonte: Elaborado a partir de Belloni; Magalhães; Sousa (2001)
FIGURA 4.3: Possibilidades analíticas em processos de avaliação.
Belloni; Magalhães; Sousa (2001) ainda observam que algumas definições de avaliação são operacionais,
voltadas para a descrição do processo avaliativo, para especificação de objetivos e processos da
implementação da avaliação, e outras são centradas na finalidade e no significado da avaliação, sendo que
a maioria das concepções congrega elementos de ambas as definições.
Figueiredo e Figueiredo (1986) ressaltam que a avaliação de políticas sociais emprega os métodos próprios
da pesquisa social, como a pesquisa de população por amostragem, a análise de dados agregados, a análise
de conteúdo e a observação participante. Heller e Nascimento (2005), ao analisarem a pesquisa e o
desenvolvimento na área de saneamento básico no Brasil, afirmam que as escolhas adotadas no
planejamento das pesquisas podem condicionar as contribuições delas esperadas.
Conforme consta em Brasil (2004), ainda que o País disponha de uma adequada base de informações de
saúde e saneamento, crescentemente aperfeiçoada, as fontes secundárias, ao ocultarem dimensões
importantes da realidade, limitam a análise da informação. Para os autores, o levantamento de dados
primários, quantitativos e qualitativos, propicia uma maior aproximação com a realidade concreta das
modificações que porventura venham a acontecer após a implantação das intervenções em saneamento, e
permite ainda fazer análises de custo/benefício e custo/efetividade. É ainda enfatizado que importante
dificuldade em avaliações de ações na área de saneamento básico reside na necessária conciliação entre
abrangência e profundidade das informações geradas, de forma a garantir que a avaliação refira-se
efetivamente ao universo de ações objeto de análise e que possa ser generalizada para outras intervenções
Momentos
Avaliação
Sujeitos
Concepção
e Objetivos
Comparação
entre
realidade ou
situação
dada e modelo
ou
perspectiva
definidos
previamente
Comparação
entre
proposto e
realizado
Processo
metódico de
aferição de
eficiência e
eficácia
Instrumento de
identificação de
acertos e
dificuldades
com vistas ao
aperfeiçoament
o
Diagnóstica:
antes da
ação
identificar
prioridades
e metas
estabelecer
parâmetros
Processual:
realizada
durante o
processo de
execução da
ação
Global:
final da
implantação
objetiva
avaliar
formulação,
execução e
resultados.
Interna ou
autoavaliação:
quando a
avaliação é
realizada por
sujeitos que
participam da
execução da
ação .
Mista:
quando
envolve
sujeitos
internos e
externos.
Externa:
quando
conduzida por
sujeitos
independente
s da
formulação,
execução e
resultados
Participativa:
apropriada a
processos
nos quais a
população
participa da
formulação e
execução.56
da mesma natureza. Os autores ressaltam a importância do aprofundamento progressivo, mesmo em
detrimento de perda de abrangência e representatividade (BRASIL, 2004).
Borja (2010) ressalta que, na área de avaliação de políticas públicas, esforços têm sido direcionados na
busca da construção de sistemas de indicadores a partir das informações disponíveis e apresenta uma
extensa lista de trabalhos que discutem a utilização de indicadores em avaliações das ações de saneamento
básico. De acordo com Brasil (2004), uma frequente tentação em estudos dessa natureza é a de conceber a
avaliação meramente como um conjunto de indicadores a serem levantados, orientando-a
primordialmente pelas possibilidades de obtenção de dados e não pelos fins a que tais indicadores prestarse-iam, em suma, privilegiando os meios e não os fins. Para Borja (2004), os indicadores se constituem em
mais um instrumento de avaliação, embora exista uma forte tendência de reduzir o processo de avaliação à
construção de um sistema de indicadores. Borja e Moraes (2005), ao realizarem uma análise crítica dos
indicadores de saúde ambiental utilizados em avaliações de políticas públicas de saneamento básico,
ressaltam que os objetivos para utilização de sistemas de indicadores usualmente podem ser claros, mas o
mesmo não pode ser dito em relação aos modelos
20
desenvolvidos, pois não só carecem de marcos teóricos
como também utilizam indicadores e métodos de ponderação e agregação discutíveis. Nesse sentido, a
construção de modelos de sistemas de indicadores envolve uma série de opções pelo proponente, com
base em suas concepções de mundo e no referencial teórico que sustenta a análise, definindo o conjunto
de metas, parâmetros e variáveis considerados. Além dessas características, a construção de modelos de
sistemas de indicadores também enfrenta limitações relacionadas às dificuldades de operacionalizar a
obtenção dos dados, face à deficiência dos sistemas de informação.
Do ponto de vista legal, a Lei n. 11.445/2007, instituiu, no seu art. 53
21
, o Sistema Nacional de Informações
em Saneamento Básico – SINISA. Campos, Montenegro e Montenegro (2011) destacam que o primeiro dos
três objetivos estabelecidos na Lei n. 11.445/2007 para o SINISA, o de “coletar e sistematizar dados
relativos às condições da prestação dos serviços públicos de saneamento básico”, já vem sendo perseguido,
com frequência anual, pelos diagnósticos anuais publicados, utilizando a base de dados do SNIS – Sistema
Nacional de Informações sobre Saneamento, pela Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA do
Ministério das Cidades – MCIDADES. Para os autores, o SNIS pode e deve desempenhar importante papel
no âmbito da constituição do SINISA.
Campos et al. (2011) e Borja (2010), ao abordarem as fontes de informação de interesse para área de
saneamento básico e importantes para a concepção do SINISA, apresentam uma revisão dos instrumentos,
implementados no Brasil, de coleta, sistematização e divulgação de dados que informam sobre a demanda
e a oferta de serviços de saneamento básico nos domicílios urbanos e rurais, com destaque para os censos
20
No estudo Avaliação de impacto na saúde das ações de saneamento: marco conceitual e estratégia metodológica, os autores
utilizam o modelo FPEEEA (Forças Motrizes, Pressões, Estados, Exposições, Efeitos e Ações) proposto pela Organização Mundial de
Saúde e que busca explicar como várias forças motrizes geram pressões, que afetam o estado do meio ambiente, que expõe a
população a riscos e afetam a saúde humana. Para maiores detalhes ver Brasil (2004).
21
Art. 53. Fica instituído o Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico - SINISA, com os objetivos de:
I - coletar e sistematizar dados relativos às condições da prestação dos serviços públicos de saneamento básico;
II - disponibilizar estatísticas, indicadores e outras informações relevantes para a caracterização da demanda e da oferta de serviços
públicos de saneamento básico;
III - permitir e facilitar o monitoramento e avaliação da eficiência e da eficácia da prestação dos serviços de saneamento básico.
§ 1
o
As informações do Sinisa são públicas e acessíveis a todos, devendo ser publicadas por meio da internet.
§ 2
o
A União apoiará os titulares dos serviços a organizar sistemas de informação em saneamento básico, em atendimento ao
disposto no inciso VI do caput do art. 9
o
desta Lei.
Fonte: BRASIL, 2007.57
demográficos e as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio, PNAD, ambos de responsabilidade do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A implementação do SINISA, na medida em que representa a consolidação do sistema de informação, pode
ser importante marco para avaliação de políticas públicas de saneamento básico. Ao disponibilizar as
informações, o sistema ampliará as possibilidades de abordagens e facilitará a apreensão dos contextos
que, quanto às ações de saneamento básico, envolvem uma multiplicidade de dimensões dificilmente
perceptíveis, caso aqueles que conduzem as análises não disponham de informações que subsidiem a
compreensão da realidade. Temporal e geograficamente, o sistema pode ensejar importantes análises,
desde que haja investimentos no aperfeiçoamento da qualidade das informações e nas estratégias
analíticas.
Portanto, pode-se sugerir que, no campo do saneamento básico, políticas, programas e aspectos da gestão
podem receber as imprescindíveis avaliações, de forma continuada, por meio dos sistemas de informação
periodicamente alimentados, mas também por abordagens especificamente planejadas, com objetivos,
métodos e fundamentação teórica próprias, com levantamento de dados primários.
5. A SUSTENTABILIDADE DOS SERVIÇOS
O conceito de sustentabilidade, como referencial orientador para compreensão do mundo e para
proposição de alternativas para atuação na realidade, fortalece-se, notadamente, a partir dos anos de
1970, com as discussões que se difundem após a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente
Humano, realizada em Estocolmo, no ano de 1972, e que teve como foco a crise ambiental decorrente do
modelo de desenvolvimento predominante. A noção de sustentabilidade encontra-se intrinsecamente
relacionada ao conceito de desenvolvimento sustentável
22
, que se populariza com a publicação do relatório
Nosso Futuro Comum
23
, ou Relatório Bruntland, em 1987.
Segundo Jacobi (1999, 2003, 2005), o conceito de desenvolvimento sustentável surge para enfrentar a crise
ecológica e se relaciona com a crítica ambientalista ao modo de vida contemporâneo, apresentando como
pressuposto a existência de sustentabilidade social, econômica e ecológica. Essas dimensões explicitariam a
necessidade de tornar a melhoria nos níveis e qualidade de vida compatível com a preservação ambiental,
de modo a favorecer as necessidades humanas presentes e futuras. Para Jacobi (2005), o desenvolvimento
sustentável apresenta como premissa básica a incorporação do marco ecológico nas decisões econômicas e
políticas, o que implica reconhecer que as consequências ecológicas do modo como a população utiliza os
recursos do Planeta estão associadas ao modelo de desenvolvimento.
Embora não seja objetivo deste texto aprofundar a discussão em torno do conceito de desenvolvimento
sustentável e sobre a noção, a ele relacionado, de sustentabilidade, é importante ressaltar, conforme
observa Costa (1998b), que poucos conceitos têm sido recentemente tão utilizados e debatidos, razão pela
22
Um dos primeiros registros do termo aparece no documento chamado World Conservation Strategy, publicado em 1980 pelas
organizações IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza) e WWF (Fundo Mundial para Natureza), sob o patrocínio
das Nações Unidas. Contudo, populariza-se com a publicação Nosso Futuro Comum, em 1987, consolidando-se com a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 (ZHOURI; PEREIRA; LASCHEFSKI, 2005).
23
Nosso Futuro Comum, ou Relatório Brundtland, é um documento elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CMMD), presidida pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland. O relatório faz parte de
uma série de iniciativas da Organização das Nações Unidas, as quais reafirmam uma visão crítica ao modelo de desenvolvimento
adotado pelos países industrializados e reproduzido pelas nações em desenvolvimento, e ressaltam os riscos do uso excessivo dos
recursos naturais, sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas. O relatório define o desenvolvimento sustentável
como “aquele que atende às necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às
suas necessidades” (CMMD, 1987). 58
qual lhe falta precisão e conteúdo, cabendo as mais variadas definições. Segundo Jacobi (2005), o
"desenvolvimento sustentável" tem se convertido em conceito plural: não apenas existem diferentes
concepções do desenvolvimento em jogo, mas também o que se entende por sustentabilidade. Redclift
(2003), citado por Jacobi (2005), observa que as ligações entre o meio ambiente, a justiça social e a
governança têm se tornado crescentemente vagas em alguns discursos de sustentabilidade, e que as
relações estruturais entre o poder, a consciência e o meio ambiente têm sido gradualmente obscurecidas.
Para Zhouri; Pereira; Laschefski (2005), no corrente debate sobre sustentabilidade, a ideia de uma
conciliação entre os “interesses”
24
econômicos, ecológicos e sociais ocupa papel chave, prevalecendo a
crença de que os conflitos entre os diferentes segmentos da sociedade possam ser resolvidos por meio da
“gestão” do diálogo entre os atores, com a finalidade de se alcançar um “consenso”. Os mesmo autores
complementam que uma reflexão crítica acerca das concepções vigentes de desenvolvimento sustentável
implica considerar a existência de distintas formas de se conceber e interagir com o meio ambiente,
levando a reconhecer os múltiplos projetos de sociedade que, não raro, acionam diferentes matrizes de
sustentabilidade e esbarram nas reais assimetrias de poder, impressas nas dinâmicas sociais e políticas.
Leroy et al. (2002) corroboram a reflexão crítica relativa à apropriação do conceito de desenvolvimento
sustentável por uma minoria, que tem logrado impor sua vontade ao conjunto da humanidade. No entanto,
para os autores, outros segmentos da sociedade podem se recusar a acatar as vontades dessa minoria,
criticando os valores impostos e vislumbrando outras formas de futuro. Nesse contexto, a sustentabilidade
sai do campo estritamente econômico e pode ser entendida como o processo pelo qual as sociedades
administram suas condições materiais, redefinindo os princípios éticos e sociopolíticos que orientam a
distribuição de seus recursos ambientais.
Para Jacobi (2005), trata-se de delimitar um campo bastante amplo, em que se dá a luta política sobre o
significado de sustentabilidade, sendo que a institucionalização da noção de desenvolvimento sustentável
sempre esteve permeada por diferentes interpretações, além de servir como instrumento de ancoragem da
política ambiental internacional, por meio das agências das Nações Unidas. Nessa conjuntura, merece
destaque o papel da ONU, que, por meio de conferências, tais como a Conferência das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (Rio-92) e a Rio+10, realizada em Johanesburgo, em 2002, e de redes globais, tais como o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (PNUMA), tem contribuído para a inserção da temática ambiental na pauta das reflexões
internacionais que envolvem alternativas de desenvolvimento. Evidentemente, embora seja inegável esse
papel, menos consensual tem sido o resultante da abordagem patrocinada pelas Nações Unidas.
Entre as ações da ONU, Jacobi (2005) destaca a importância da Agenda 21 Global, documento elaborado
durante a Rio-92, como plano abrangente de ação para o desenvolvimento sustentável no século XXI, que
considera a complexa relação entre o desenvolvimento e o meio ambiente numa variedade de áreas,
destacando a sua pluralidade, diversidade, multiplicidade e heterogeneidade. No Brasil, impulsionados
pelas discussões e pelos resultados da Rio-92, e seguindo a Agenda 21 Global, governo e sociedade deram
início a um conjunto de ações de elaboração de Agendas 21, nos âmbitos nacional, regional e local, sendo
que, em 2002, um terço dos municípios brasileiros informaram ter dado início ao processo de Agenda 21
local (MALHEIROS; PHILIPPI Jr.; COUTINHO, 2008). Para a área de saneamento básico, a Agenda 21 Global
representa importante marco, na medida em que insere, na pauta dos debates internacionais, questões
relativas à área. No âmbito da Agenda 21
25
, destaque-se a importância dos Capítulos 6, 18 e 21, que
24
Grifos dos autores .
25
Texto completo da Agenda 21 disponível em:
http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=59759
abordam, respectivamente, a proteção e promoção das condições da saúde humana, a proteção da
qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos e o manejo ambientalmente saudável dos resíduos
sólidos e questões relacionadas com os esgotos.
A sustentabilidade aponta para dimensões que, além de abranger a perspectiva econômica, consideram
também, como essenciais, os aspectos ambientais e sociopolíticos. No bojo das intervenções em
saneamento básico, a inserção da temática da sustentabilidade, nas reflexões em torno das ações
desenvolvidas, explicita sua multidimensionalidade e representa desafio nos planos prático e conceitual.
São recorrentes os exemplos de ações, procedimentos e decisões tomadas na área de saneamento básico
que, independente da conceituação adotada, podem ser classificados de insustentáveis do ponto de vista
ambiental, econômico, social, cultural e político e que ainda se mantém como práticas acriticamente
aceitas por importantes segmentos do setor. Como exemplos, em relação ao abastecimento de água,
destacam-se os elevados índices de perda observados nos sistemas, que podem alcançar. A média das
perdas de água reais e aparentes nos sistemas públicos de abastecimento no Brasil é de,
aproximadamente, 40% do volume total produzido (BRASIL, 2009), acarretando flagrante uso inadequado
do bem ambiental e importante desperdício de energia necessária ao transporte da água.
Tomando como referência os serviços de esgotamento sanitário, pode-se constatar, por exemplo, a
insustentabilidade, do ponto de vista social e ambiental, de intervenções que visam à expansão das redes,
sem indicar soluções para o tratamento e destino final dos efluentes. Para Heller (2006), a existência de
cobertura por coleta de esgotos não necessariamente proporciona uma efetiva melhoria nas condições de
saúde e ambientais e pode até provocar um agravamento dos problemas à saúde humana, caso a solução
anteriormente prevalente, invariavelmente de infiltração dos efluentes no subsolo por diferentes tipos de
fossas, se mantivesse funcionando medianamente. Nesse caso, na ausência de interceptores, a rede
termina por concentrar os esgotos nos corpos de água do meio urbano, expondo as populações e
aumentando a circulação ambiental de microrganismos patogênicos. Por outro lado, comparando-se
soluções dinâmicas – concentradoras e impactantes aos cursos de água – com as estáticas –
descentralizadas – pode-se sugerir a maior “insustentabilidade” das primeiras, em muitas situações.
No âmbito do manejo dos resíduos sólidos, as dimensões propostas pelo conceito de sustentabilidade têm
ganhado destaque na formulação de alternativas de gestão e gerenciamento, face às complexidades que
envolvem o tema, como também pelo fracasso de alternativas já desenvolvidas como, por exemplo, a
implantação, na década de 1990, de Usinas de Triagem e Compostagem, muitas das quais se encontram
abandonadas, conforme discutido por Barbosa (2004). Conforme a Lei n. 12.305/2010, com o manejo dos
resíduos sólidos buscam-se os princípios da prevenção e a precaução; da visão sistêmica que considere as
variáveis ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública; o respeito às diversidades
locais e regionais, mediante práticas de não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos
resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
Na área de drenagem pluvial, observa-se a frequente e clássica solução de implantação de “avenidas
sanitárias”, nos fundos de vale, associadas à canalização dos rios urbanos, visando a proclamada integração
urbana, controle de inundações e escoamento dos esgotos. Segundo Tucci (2009), essa solução é
ambientalmente desastrosa, pois destrói um sistema natural, estrangula o rio e desobedece a legislação
florestal, ao eliminar a área de proteção dos rios. Isto, ao final, compromete a qualidade de vida da
população, além de apresentar escassa capacidade de controle de inundações. 60
Mas, fundamentalmente, a (in)sustentabilidade dos serviços de saneamento básico expressa-se no
descompasso entre os esforços de implantação dos sistemas e sua continuidade posterior. A área de
saneamento básico no Brasil é ainda muito dominada pela excessiva valorização das intervenções de
engenharia e pelo desprezo à dimensão dos serviços, naquilo que se refere, por exemplo, às questões de
manutenção e operação, conduzindo a soluções com baixa “sustentação” no tempo.
Por outro lado, Jacobi (2003) ressalta que a sustentabilidade, como novo critério básico e integrador,
precisa estimular permanentemente as responsabilidades éticas, na medida em que a ênfase nas questões
extra econômicas possibilita a reconsideração de aspectos relacionados com a equidade, a justiça social e a
própria ética dos seres vivos. Nesse sentido, o requisito da sustentabilidade engloba aspectos de naturezas
complexas, uma vez que perpassam, simultaneamente, questões econômico-financeiras, ambientais,
sociopolíticas e culturais.
A fim de discutir a aplicação da noção de sustentabilidade à gestão do saneamento ambiental, Brito (2009)
toma como referência os estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa EUROWATER/WATER 21 e
denominados Institutional Mechanisms for Water Management in the Context of Environmental Policies.
Segundo a autora, o Projeto Water 21 visa à pesquisa do contexto das práticas de gestão da água nos
países da União Europeia no quadro da sustentabilidade, identificando fatores que contribuem ou
retardam a formulação e a operacionalização de políticas de desenvolvimento sustentável. Brito (2009)
destaca que a metodologia desenvolvida pelo EUROWATER parte de uma definição mais geral de
sustentabilidade, construída a partir de três dimensões, caracterizadas como 3Es, sendo essas:
dimensão ambiental (environment), relativa ao uso racional e preservação dos recursos
hídricos e da qualidade do ambiente;
dimensão econômica, que concerne à viabilidade econômica dos serviços, baseada na
perspectiva de seu financiamento pelos usuários;
dimensão ética, que diz respeito à percepção dos usuários em relação aos serviços e na sua
aceitabilidade social.
A autora, em decorrência da realidade brasileira, marcada por uma diversidade de modelos de gestão na
área de saneamento básico, agrega uma quarta dimensão à proposta. Para Brito (2009), no Brasil, é
relevante a consideração da dimensão da governança, que envolve mecanismos institucionais e culturas
políticas, e que tem por objetivo a promoção de uma gestão democrática e participativa, pautada em
mecanismos de accountability. A autora ainda complementa que, a partir dessas quatro dimensões, pode
ser construído um tipo-ideal do que seria um modelo sustentável de gestão de serviços de saneamento
ambiental. Na construção desse tipo-ideal, a autora considera importante privilegiar os seguintes aspectos:
as escalas institucionais e territoriais de gestão; a construção da intersetorialidade; a possibilidade de
conciliar eficiência técnica e econômica e eficácia social; o controle social e a participação dos usuários na
gestão dos serviços; a preservação ambiental. A estrutura de análise proposta por Brito (2009) pode ser
representada por um tetraedro conforme ilustrado na Figura 5.1.61
Fonte: Britto (2009).
FIGURA 5.1: Dimensões e critérios do desenvolvimento sustentável.
Do ponto de vista da dimensão ambiental, Gonçalves (2009) observa que a adoção de soluções
ambientalmente sustentáveis pela área de saneamento básico pressupõe uma importante mudança dos
conceitos e das práticas hoje vigentes. Otterpohl; Grottker; Lange (1997) apud Gonçalves (2009), destacam
que, embora as ações relacionadas com o saneamento ecológico
26
sinalizem para um futuro mais racional,
no que se refere ao uso da água e da energia a ela relacionada, bem como à ciclagem dos nutrientes, é
evidente que as soluções de larga escala ainda estão muito aquém do desenvolvimento necessário para a
sua implementação, como um novo paradigma. Para Gonçalves (2009), a essencialidade dos serviços
prestados pela área de saneamento básico tem justificado a reduzida atenção conferida à sustentabilidade
ambiental de suas intervenções e comprometido os usos múltiplos da água. Os autores ainda ressaltam que
o processo de adaptação às mudanças climáticas pelo setor de saneamento básico tende a agravar o
problema, provocando o deslocamento de água por distâncias cada vez maiores e a dessalinização em larga
escala, por exemplo.
Peixoto (2011), ao discutir aspectos da dimensão econômica dos serviços de saneamento básico, remete ao
estabelecido na Lei n. 11.445/2007, segundo a qual “os serviços públicos de saneamento básico terão a
sustentabilidade econômico-financeira assegurada, sempre que possível, mediante remuneração pela
cobrança dos serviços”. Para o autor, conforme estabelecido pelo dispositivo legal citado, a cobrança dos
usuários pela prestação dos serviços de saneamento básico não é e, em muitos casos, não deve ser a única
forma de alcançar sua sustentabilidade econômico-financeira. Para Peixoto (2011), a sustentabilidade
econômica dos serviços públicos, tais como os de saneamento básico, é de fato assegurada quando o Poder
Público e os fundos financeiros, públicos e privados, garantirem fontes de recursos (financeiros ou não)
regulares, estáveis e suficientes para o seu financiamento, e o modelo de gestão institucional e jurídicoadministrativo é o mais adequado. O autor ressalta que a sustentabilidade econômico-financeira dos
26
O conceito de eco-saneamento, ou saneamento ecológico, baseia-se na separação das correntes de resíduos domésticos em um
ciclo das águas e em um ciclo de nutrientes e energia, conforme suas características, em termos de volume, teor de nutrientes e
contaminação biológica. Assim, urina e fezes relacionam-se predominantemente com o ciclo dos nutrientes, enquanto que as águas
cinza e as águas de chuva devem ser integradas ao ciclo das águas (COHIM; COHIM, 2007).62
serviços públicos, em especial os de saneamento básico, pelas suas características, depende também da
sustentabilidade jurídico-institucional de sua gestão, tendo em vista que o rompimento desta, ou mesmo
uma simples ameaça, pode inviabilizar aquela, seja pela interrupção parcial de suas fontes de sustentação,
seja pelo eventual aumento do custo dos serviços. Exemplos de situações e ocorrências desse tipo são
abundantes na história dos serviços de saneamento básico no Brasil (PEIXOTO, 2011).
Peixoto (2011) ainda complementa que a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos só
terá efetividade e eficácia plena, do ponto de vista do interesse público, se forem cumpridos os objetivos
sociais inerentes à prestação desses serviços. Portanto, nas palavras do autor, não basta que seja
assegurada a cobertura de todos os custos econômicos dos serviços prestados e que sua gestão observe os
requisitos institucionais e jurídicos. É condição necessária que os serviços também sejam universalmente
disponíveis e acessíveis, de forma integral e com qualidade adequada. Para Peixoto (2011), essa é a
sustentabilidade plena que deve ser almejada. Nessa direção, é relevante observar a importância da
consideração dos aspectos referentes à sustentabilidade social, como perspectiva orientadora das ações de
saneamento básico. Sob o enfoque da sustentabilidade social, os princípios da universalidade,
integralidade, equidade e qualidade do acesso passam a compor as diretrizes das intervenções na área de
saneamento básico.
Pelo exposto, a sustentabilidade, para se firmar como um novo paradigma de intervenção, requereria uma
leitura complexa da realidade. E uma mudança de paradigma não é um processo neutro nem tampouco se
alcança sem uma profunda alteração de atitudes, comportamentos e princípios que orientam a tomada de
decisão, o que torna evidente a centralidade da formação dos profissionais na definição dos rumos desse
processo. O conjunto de ideias, conhecimentos, atitudes, pressupostos e preconceitos compartilhados
pelos técnicos, em geral, e pelos funcionários do governo, em particular, e sua abertura ou não à
participação da sociedade na tomada da decisão, definirão em que momento e como se dará a quebra de
paradigma e a instituição de um novo modo de se fazer o saneamento básico. Um saneamento básico que,
a partir dos ensinamentos do passado, entre em sintonia com as exigências do presente e se sustente
frente aos desafios futuros.
6. O DESAFIO TECNOLÓGICO
27
Planejar o saneamento básico no País, com um olhar de longo prazo, necessariamente envolve a
prospecção dos rumos tecnológicos que o setor pode, ou deve, trilhar. Tal questão envolve diferentes
dimensões. De um lado, impõe identificar tendências, nacionais, mas sobretudo globais, segundo as quais a
matriz tecnológica do saneamento vem se moldando, o que supõe também procurar enxergar novos
conceitos, ainda que sejam antigas formulações em novas roupagens, ou novos desafios que pressionam no
sentido de mudanças paradigmáticas. Temas como a sustentabilidade urbana e ambiental, a gestão
integrada das águas urbanas, o saneamento ecológico e o combate e adaptação às mudanças climáticas
globais podem ser evocados como exemplos. Por outro lado, espera-se que o planejamento em
saneamento procure tanto se sintonizar com essas tendências e procurar diagnosticá-las, quanto ser
indutor das melhores práticas tecnológicas, as entendendo com aquelas que tragam os maiores benefícios
para a população e o ambiente físico.
27 Elaborado com base, principalmente, no Caderno Temático 8, Desenvolvimento Tecnológico, de autoria de Cícero Onofre de
Andrade Neto, e em Heller e Nascimento (2005) e Nascimento e Heller (2005).63
Ademais, a influência das tendências tecnológicas sobre a política de saneamento pode ser dupla: tanto
significa, ativamente, enxergar que padrão tecnológico deve ser apoiado e incentivado, inclusive prevendose movimentos de transição ao longo do período de planejamento, quanto sugere, reativamente, forte
atenção da política para com as tendências do desenvolvimento científico e tecnológico, que também pode
ser objeto de suporte e indução, na direção das trajetórias mais desejáveis daquela política. Outra faceta
dessa relação é a própria indução da política de desenvolvimento científico e tecnológico em saneamento
básico por parte da política setorial, tanto no sentido de apoiá-la em seu financiamento, como colocando
em pauta temas considerados prioritários para o êxito da política.
Na perspectiva do desenvolvimento científico e tecnológico, a política de saneamento pode ser motor do
aprofundamento em questões escassamente debatidas no meio, como Heller e Nascimento (2005): A
implantação de obras e instalações de saneamento, intrinsecamente, conduz a benefícios à população? A
seleção tecnológica é independente da identificação e qualificação dos benefícios? Diante da reconhecida
necessidade de ampliação da cobertura por saneamento, seria supérfluo discutir e comparar alternativas
tecnológicas, diferentes modelos de gestão ou avaliar o impacto das soluções espontaneamente adotadas
pela população? Seria também supérfluo avaliar a efetividade de programas e intervenções, visando
retroalimentar concepções futuras?
Entende-se que, para o benefício da efetividade do Plansab, a resposta a essas questões deveria ser
negativa. E que seria obrigação e responsabilidade do setor discutir-se, quanto às suas práticas, aos
resultados de suas ações, às conveniências entre as diversas opções que se apresentam para resolver um
problema técnico, à decisão por um dado modelo de gestão, à validação de uma experiência empírica. E
que tal discussão tem pertinência no campo da pesquisa e desenvolvimento, já que, dado o quadro de
carências e necessidades do setor, esse também tem opções a realizar e rumos a tomar, diante de um
leque de possibilidades (HELLER; NASCIMENTO, 2005).
Dimensão que necessita ser recuperada nessa discussão tecnológica refere-se ao grau em que as técnicas
pesquisadas, desenvolvidas e aperfeiçoadas promovem, quando aplicadas em condições reais de campo, o
benefício potencialmente idealizado, tanto em termos de seu funcionamento mais direto (e.g.: capacidade
de um determinado processo de tratamento em remover determinada substância), quanto em termos de
seu benefício à população ou ao ambiente (e.g.: redução da ocorrência de dengue em população
decorrente da implantação de sistema de drenagem urbana). Obviamente, entre a solução técnica testada
em condições experimentais controladas e a sua aplicação prática, atuam mediadores de diversas
naturezas – operacionais, gerenciais, administrativos, econômicos, culturais – que determinam a maior ou
menor efetividade do dispositivo ou do processo (HELLER; NASCIMENTO, 2005).
Dentre esses mediadores, relevante e crucial influência é exercida pela gestão dos serviços, podendo tanto
potencializar quanto restringir os benefícios. Igualmente, tema fundamental nessa discussão é o da
apropriação dos serviços pela população, na medida em que, dependendo das características socioculturais
da comunidade objeto das intervenções, frequentemente não é curta a distância entre as soluções
concebidas pelos técnicos e a aderência a elas pelos pretensos beneficiários. Nesse particular, o impacto
sobre a saúde de uma dada solução tecnológica em muitos casos dependerá, dentre outros aspectos
(HELLER; NASCIMENTO, 2005):
do diálogo com a população, durante a concepção das soluções;
da proximidade entre gestores e população;64
de um processo continuado de avaliação do serviço;
da integração entre a área de saneamento e outras áreas afins, sobretudo a de saúde;
da retroalimentação pela vigilância epidemiológica;
da facilitação de mecanismos para a participação popular e o controle social;
da prática de uma política tarifária inclusiva.
Independente da visão dos fins mais gerais a ser atingidos na pesquisa em saneamento básico, a escolha
dos objetos relaciona-se com a concepção particular sobre a sua posição na escala dos avanços científicos e
tecnológicos exibidos pela área, conforme ilustrado pela Figura 6.1, onde se modelam perspectivas
científicas, a partir de duas visões extremas sobre o grau de evolução do campo de conhecimento.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Controle social e participação 16 A participação e o controle social inserem-se no âmbito da gestão dos serviços de saneamento básico e relacionam-se ao desenvolvimento da democracia ocidental capitalista, na medida em que estão atrelados aos princípios da cidadania e da governança dos bens comuns. Participação e controle social representam a democratização da gestão dos serviços, processo que enfrenta, como um dos maiores desafios, a proposição de articulações interdisciplinares, em um campo cada vez mais complexo, tendo em vista a influência de fatores não apenas técnicos, mas também de caráter político, econômico e cultural (CASTRO, 2011b; JACOBI, 2004). Porém, a gestão dos serviços de saneamento, tradicionalmente, é relegada à dimensão técnico-administrativa, artificialmente separando-se dos processos socioeconômicos e políticos, os quais estruturam, dão marco e até determinam a forma como esses serviços são organizados e geridos (CASTRO, 2011b)
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