Colunistas
28/12/2010 - 07h00
Oito anos de degustação
“Os pedágios da corrupção política e da falta de educação e formação de boa parte da sociedade brasileira são os dois fatores mais graves que permanecem ao final da era Lula. Aqui, ele não pode abrir a boca para dizer que 'nunca antes na história do país' mudanças foram produzidas"
Certamente, há um bocado de complexidade na administração de um país grande, com uma imensa falta de uniformidade social, com quistos como os provocados pelo crime organizado no Rio de Janeiro especialmente, com um sistema de educação considerado um dos piores do mundo, com taxa de corrupção altíssima, etc, etc, como o Brasil. Mas o presidente Lula, ao fazer um balanço da sua passagem pelo cargo, conclui que lidar com todos esses problemas foi “gostoso até demais”.
E deve ter sido “gostoso até demais” mesmo. Com uma popularidade de mais de 80%, nunca vista no final de um governo, elegendo como sua sucessora alguém até então desconhecida do mundo político, com recordes na taxa de pleno emprego, economia estabilizada e inclusão social nunca vista, Lula tem mesmo razão de concluir seu mandato satisfeito.
E é evidente a percepção de como ele se sentiu à vontade no posto. Morar num palácio, conversar de igual para igual com os principais governantes do mundo, voar no Aerolula. Lula viveu tudo isso com muito prazer. E não é verdade dizer que qualquer um assim faria. Para citar um exemplo, Itamar Franco sempre pareceu alguém pouco à vontade no posto. Quem o acompanhou como presidente sabe. Itamar fugia da segurança para ir ao shopping de Fusca com a namorada. Passou dois anos insistindo em levar uma vida de pessoa comum que o cargo lhe negava. Ou seja: do ponto de vista da rotina presidencial, das benesses e das obrigações, o que para Lula foi uma delícia, pode ter sido um tanto quanto penoso para Itamar.
A isso se soma a compensação pelas respostas dadas pelas ruas, seja na percepção da sua popularidade, seja nas urnas que elegerem Dilma. Mas, voltando aos problemas listados lá no primeiro parágrafo, a gente sabe que, apesar dos avanços, as complexidades brasileiras continuam fazendo vítimas diárias. E Lula, com a sensibilidade que certamente tem, deve sair sabendo que seus oito anos de mandato não resolveram todos os problemas brasileiros. Ao final do “gostoso até demais”, é o gostinho amargo que fica desses oito anos de degustação. Talvez resida aí o maior desafio que terá Dilma Rousseff: quando Lula deixar a Presidência, e o país sair da sombra provocada pela sua imensa e popular presença, é possível que aflorem de forma mais visível os nossos problemas, e a perspectiva de que temos de enfrentá-los.
Muitos balanços da era Lula foram publicados nos últimos dias. Assim, sem a pretensão da originalidade, vamos a mais um deles aqui. A diferença será avaliar o impacto do que houve de positivo e negativo na perspectiva da ausência de Lula no poder.
Estabilidade econômica – Quando conversamos com investidores, embaixadores ou outros agentes estrangeiros que atuam no Brasil, há sempre um ponto em comum na impressão deles. Todos consideram que o país tornou-se um porto confiável para investimentos. Cumpre as regras do mercado e não está disposto a fazer loucuras. Ou seja: lucra cada vez mais como opção de investimentos externos, e sabe que a contrapartida exigida é que nenhuma guinada haverá na condução da economia. Antes das eleições, em conversas com diplomatas espanhóis e portugueses, eles diziam ter absoluta certeza de que nada mudaria vencesse as eleições Dilma ou José Serra. Assim como Lula manteve os pressupostos de política econômica que Fernando Henrique Cardoso já mantinha, assim fará Dilma. Esse é um ponto da vida brasileira que entrou no automático.
Desenvolvimento e política social – É aqui que está o pulo do gato da era Lula, onde seu governo diferenciou-se de Fernando Henrique e onde garantiu as altíssimas taxas de popularidade que conquistou. Até Fernando Henrique, o controle da inflação e da estabilidade econômica era feito com uma imensa contenção do crédito e do consumo. Evitava-se o avanço de novas camadas da sociedade ao mercado porque se acreditava que isso faria a inflação estourar e que se perderia o controle. Lula apostou na certeza de que deveria facilitar o crédito e melhorar as condições das populações de baixa renda com a ampliação dos programas sociais. Com isso, incrementou fortemente o mercado interno. Quando estourou a crise mundial, o país estava menos dependente dos mercados externos. O Brasil assim escapou da crise. E a imensa satisfação das camadas mais pobres que antes não tinham acesso ao consumo transformou Lula nesse fenômeno de popularidade.
Política externa – Ser chamado pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, de “o cara” está longe de ter sido uma brincadeira gratuita. A política externa de Lula foi um dos pontos mais coerentes e que seguiu sem maiores correções de rumo desde o início. Apoiou-se em dois pontos, e, de um modo geral, mostrou-se adequado em ambos. Em primeiro lugar, partiu do pressuposto de que as mudanças que aconteciam no eixo econômico do mundo abriam espaço para a construção de novas parcerias das quais o Brasil poderia se tornar protagonista. Assim, aproximou-se da China, da Índia. Criou os Brics (o conjunto que hoje forma com outros países emergentes na economia – Rússia, China, Índia, e, agora, a África do Sul). Firmou parcerias firmes com a França. Assim, ganhou musculatura para o segundo ponto: exercer um papel maior de protagonista nos debates internacionais. Nesse ponto, pode ter falhado em moderar as críticas ao Irã ou à Venezuela. Mas é inegável que o Brasil hoje tem opiniões mais respeitadas no plano internacional.
Educação – Lula talvez não tenha se dado conta do imenso impacto negativo da imagem que passava de homem que se fez por si mesmo, sem escola, sem educação formal. Esqueceu-se que era um fenômeno difícil de se repetir. A identificação que gerou nas pessoas com origem semelhante à sua tinha chance quase zero de se repetir nas suas trajetórias, num mundo com cada vez menos espaço para os trabalhos braçais e não especializados. Dentre os países do grupo emergente do qual faz parte, o Brasil tem hoje índices iguais de potencial econômico, mas índices vergonhosamente inferiores quando se verifica a educação de seu povo. Analfabetismo, escolas precárias, baixa formação. Quando o país perceber que não há espaço para um segundo Lula, já terá perdido a batalha para os outros países no futuro.
Corrupção e formação política – Ao avaliar o ministério que formou, que não consegue agradar nem a ela, Dilma provavelmente percebe o tamanho do ônus que vem da escolha de não tentar alterar a prática política. Lula elegeu-se em 2002 centrando o discurso da sua campanha na promessa de uma alteração profunda no plano da ética nas relações políticas. A propaganda do governo é incapaz de esconder que, nesse ponto, a era Lula falhou de forma retumbante. A popularidade de Lula poderia ter estabelecido um pacto com a sociedade, no qual o governo poderia propor um programa de mudanças e impor ao Congresso essa agenda. Se a população apoiasse o programa, o Congresso acabaria, sem alternativa, por encampá-lo. Como nunca houve com clareza tal agenda, o caminho seguido foi o mesmo de sempre: conquistar a qualquer preço a maioria, e essa maioria, satisfeita com as contrapartidas em cargos e em verbas, aprovaria o que lhe fosse pedido. O resultado foram os vários escândalos surgidos. Em muitos momentos, Lula viu-se apenas na condição de defensor de biografias que os escândalos manchavam. Fez assim com José Sarney, com Renan Calheiros, com Jader Barbalho. Chegou ao cúmulo ao afagar Fernando Collor, um presidente que ajudou a derrubar e que tinha feito o mais feio e pesado dos jogos para derrotá-lo em 1989. Difícil conseguir conciliar tal perdão com coerência ou retidão de caráter.
O ministério que tomará posse com Dilma no sábado é só o fruto mais recente das consequências de tal relação política. E é nesse ponto que o Brasil, após os oito anos de degustação da era Lula, talvez mais perca. É evidente que ministros políticos que nada entendem das pastas que ocupam terão menos capacidade de fazer evoluir os setores que ficam sob suas responsabilidades. É evidente que o país perde quando parte das verbas públicas precisa atender aos interesses políticos dos aliados (para dizer o mínimo), pulverizadas nas emendas individuais ao orçamento. Que são, de acordo com as palavras do próprio ministro da Controladoria Geral da União, Jorge Hage, os principais fatores de desvio e corrupção com o dinheiro público.
Os pedágios da corrupção política e da falta de educação e formação de boa parte da sociedade brasileira são os dois fatores mais graves que permanecem ao final da era Lula. Aqui, ele não pode abrir a boca para dizer que “nunca antes na história do país” mudanças foram produzidas.
E deve ter sido “gostoso até demais” mesmo. Com uma popularidade de mais de 80%, nunca vista no final de um governo, elegendo como sua sucessora alguém até então desconhecida do mundo político, com recordes na taxa de pleno emprego, economia estabilizada e inclusão social nunca vista, Lula tem mesmo razão de concluir seu mandato satisfeito.
E é evidente a percepção de como ele se sentiu à vontade no posto. Morar num palácio, conversar de igual para igual com os principais governantes do mundo, voar no Aerolula. Lula viveu tudo isso com muito prazer. E não é verdade dizer que qualquer um assim faria. Para citar um exemplo, Itamar Franco sempre pareceu alguém pouco à vontade no posto. Quem o acompanhou como presidente sabe. Itamar fugia da segurança para ir ao shopping de Fusca com a namorada. Passou dois anos insistindo em levar uma vida de pessoa comum que o cargo lhe negava. Ou seja: do ponto de vista da rotina presidencial, das benesses e das obrigações, o que para Lula foi uma delícia, pode ter sido um tanto quanto penoso para Itamar.
A isso se soma a compensação pelas respostas dadas pelas ruas, seja na percepção da sua popularidade, seja nas urnas que elegerem Dilma. Mas, voltando aos problemas listados lá no primeiro parágrafo, a gente sabe que, apesar dos avanços, as complexidades brasileiras continuam fazendo vítimas diárias. E Lula, com a sensibilidade que certamente tem, deve sair sabendo que seus oito anos de mandato não resolveram todos os problemas brasileiros. Ao final do “gostoso até demais”, é o gostinho amargo que fica desses oito anos de degustação. Talvez resida aí o maior desafio que terá Dilma Rousseff: quando Lula deixar a Presidência, e o país sair da sombra provocada pela sua imensa e popular presença, é possível que aflorem de forma mais visível os nossos problemas, e a perspectiva de que temos de enfrentá-los.
Muitos balanços da era Lula foram publicados nos últimos dias. Assim, sem a pretensão da originalidade, vamos a mais um deles aqui. A diferença será avaliar o impacto do que houve de positivo e negativo na perspectiva da ausência de Lula no poder.
Estabilidade econômica – Quando conversamos com investidores, embaixadores ou outros agentes estrangeiros que atuam no Brasil, há sempre um ponto em comum na impressão deles. Todos consideram que o país tornou-se um porto confiável para investimentos. Cumpre as regras do mercado e não está disposto a fazer loucuras. Ou seja: lucra cada vez mais como opção de investimentos externos, e sabe que a contrapartida exigida é que nenhuma guinada haverá na condução da economia. Antes das eleições, em conversas com diplomatas espanhóis e portugueses, eles diziam ter absoluta certeza de que nada mudaria vencesse as eleições Dilma ou José Serra. Assim como Lula manteve os pressupostos de política econômica que Fernando Henrique Cardoso já mantinha, assim fará Dilma. Esse é um ponto da vida brasileira que entrou no automático.
Desenvolvimento e política social – É aqui que está o pulo do gato da era Lula, onde seu governo diferenciou-se de Fernando Henrique e onde garantiu as altíssimas taxas de popularidade que conquistou. Até Fernando Henrique, o controle da inflação e da estabilidade econômica era feito com uma imensa contenção do crédito e do consumo. Evitava-se o avanço de novas camadas da sociedade ao mercado porque se acreditava que isso faria a inflação estourar e que se perderia o controle. Lula apostou na certeza de que deveria facilitar o crédito e melhorar as condições das populações de baixa renda com a ampliação dos programas sociais. Com isso, incrementou fortemente o mercado interno. Quando estourou a crise mundial, o país estava menos dependente dos mercados externos. O Brasil assim escapou da crise. E a imensa satisfação das camadas mais pobres que antes não tinham acesso ao consumo transformou Lula nesse fenômeno de popularidade.
Política externa – Ser chamado pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, de “o cara” está longe de ter sido uma brincadeira gratuita. A política externa de Lula foi um dos pontos mais coerentes e que seguiu sem maiores correções de rumo desde o início. Apoiou-se em dois pontos, e, de um modo geral, mostrou-se adequado em ambos. Em primeiro lugar, partiu do pressuposto de que as mudanças que aconteciam no eixo econômico do mundo abriam espaço para a construção de novas parcerias das quais o Brasil poderia se tornar protagonista. Assim, aproximou-se da China, da Índia. Criou os Brics (o conjunto que hoje forma com outros países emergentes na economia – Rússia, China, Índia, e, agora, a África do Sul). Firmou parcerias firmes com a França. Assim, ganhou musculatura para o segundo ponto: exercer um papel maior de protagonista nos debates internacionais. Nesse ponto, pode ter falhado em moderar as críticas ao Irã ou à Venezuela. Mas é inegável que o Brasil hoje tem opiniões mais respeitadas no plano internacional.
Educação – Lula talvez não tenha se dado conta do imenso impacto negativo da imagem que passava de homem que se fez por si mesmo, sem escola, sem educação formal. Esqueceu-se que era um fenômeno difícil de se repetir. A identificação que gerou nas pessoas com origem semelhante à sua tinha chance quase zero de se repetir nas suas trajetórias, num mundo com cada vez menos espaço para os trabalhos braçais e não especializados. Dentre os países do grupo emergente do qual faz parte, o Brasil tem hoje índices iguais de potencial econômico, mas índices vergonhosamente inferiores quando se verifica a educação de seu povo. Analfabetismo, escolas precárias, baixa formação. Quando o país perceber que não há espaço para um segundo Lula, já terá perdido a batalha para os outros países no futuro.
Corrupção e formação política – Ao avaliar o ministério que formou, que não consegue agradar nem a ela, Dilma provavelmente percebe o tamanho do ônus que vem da escolha de não tentar alterar a prática política. Lula elegeu-se em 2002 centrando o discurso da sua campanha na promessa de uma alteração profunda no plano da ética nas relações políticas. A propaganda do governo é incapaz de esconder que, nesse ponto, a era Lula falhou de forma retumbante. A popularidade de Lula poderia ter estabelecido um pacto com a sociedade, no qual o governo poderia propor um programa de mudanças e impor ao Congresso essa agenda. Se a população apoiasse o programa, o Congresso acabaria, sem alternativa, por encampá-lo. Como nunca houve com clareza tal agenda, o caminho seguido foi o mesmo de sempre: conquistar a qualquer preço a maioria, e essa maioria, satisfeita com as contrapartidas em cargos e em verbas, aprovaria o que lhe fosse pedido. O resultado foram os vários escândalos surgidos. Em muitos momentos, Lula viu-se apenas na condição de defensor de biografias que os escândalos manchavam. Fez assim com José Sarney, com Renan Calheiros, com Jader Barbalho. Chegou ao cúmulo ao afagar Fernando Collor, um presidente que ajudou a derrubar e que tinha feito o mais feio e pesado dos jogos para derrotá-lo em 1989. Difícil conseguir conciliar tal perdão com coerência ou retidão de caráter.
O ministério que tomará posse com Dilma no sábado é só o fruto mais recente das consequências de tal relação política. E é nesse ponto que o Brasil, após os oito anos de degustação da era Lula, talvez mais perca. É evidente que ministros políticos que nada entendem das pastas que ocupam terão menos capacidade de fazer evoluir os setores que ficam sob suas responsabilidades. É evidente que o país perde quando parte das verbas públicas precisa atender aos interesses políticos dos aliados (para dizer o mínimo), pulverizadas nas emendas individuais ao orçamento. Que são, de acordo com as palavras do próprio ministro da Controladoria Geral da União, Jorge Hage, os principais fatores de desvio e corrupção com o dinheiro público.
Os pedágios da corrupção política e da falta de educação e formação de boa parte da sociedade brasileira são os dois fatores mais graves que permanecem ao final da era Lula. Aqui, ele não pode abrir a boca para dizer que “nunca antes na história do país” mudanças foram produzidas.
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